O modelo de licitações em vigor no Brasil está esgotado pois não é mais capaz de garantir a prevalência do interesse público. Esta é a impressão geral de especialistas reunidos em um seminário promovido pela Associação dos Advogados de São Paulo na capital paulista no dia 30 de agosto.

Floriano Azevedo Marques Neto, professor titular de Direito da USP, afirmou que o modelo licitatório atual ruiu, mas ponderou que a reforma só deve ocorrer depois que acabar a crise política. “Estamos fazendo o obituário do modelo de contrações públicas brasileiras.”

O professor aponta a parcela de responsabilidade do Poder Judiciário por esta situação. Ele critica os impactos negativos causados quando uma licitação chega aos tribunais: a Justiça demora muito para resolver os questionamentos, o que encarece as obras. Como alternativa, o professor sugere a arbitragem.

Entre outras soluções discutidas, está a redução de barreiras à entrada de novos concorrentes, a possibilidade de participação de empresas estrangeiras, desburocratização no registro de proponentes e antecipação ao licenciamento ambiental dos projetos.

O professor de Direito Caio Mário da Silva Pereira, da FGV-SP, destacou que a entrada de empresas estrangeiras seria um bom caminho para acabar com a falta de competitividade encontrada atualmente em processos licitatórios. Apesar dessa sugestão, ele ponderou que, para viabilizá-la, é preciso facilitar a concessão de autorização de funcionamento no Brasil.

“É uma autorização burocrática e morosa. Demora meses para sair”, criticou o professor. Ele também citou como empecilho a exigência de empresas comprovarem patrimônio líquido mínimo, pois companhias menores acabam tendo que superar mais essa barreira para prestar serviços ao Poder Público.

Pereira sugere que, no lugar do patrimônio líquido mínimo, poderia ser exigido das empresas uma garantia financeira, que seria mais fácil de obter. Outro ponto que necessita de reformulação é a apresentação de diagnóstico técnico de experiência na área, segundo o professor.

Ele destacou ser preciso desburocratizar esse procedimento, permitindo considerar, por exemplo, obras no exterior levando em conta as regras do país em que o trabalho foi executado. O professor criticou ainda o modelo de transparência usado em licitações, por meio de publicações no Diário Oficial da União.

“Acompanhar Diário Oficial é uma coisa de maluco na era da internet”, afirmou, complementando que esse não é o caminho para formalizar a transparência. Como exemplo de modelo aparentemente melhor, ele citou o Portal da Copa, que foi o site usado pelo governo federal para divulgar as informações sobre obras da Copa do Mundo de 2014, que ocorreu no Brasil.

Pereira também defendeu a restrição de aditivos contratuais, que passaram, segundo ele, de exceção à regra. Classificando de “farra”, o professor explicou que a falta de controle sobre esses adicionais incentiva a apresentação de preços mais baixos do que o mercado pratica e inviabiliza a concorrência.

O resultado dessas exceções, continuou, é uma empresa apresentar preços muito baixos por saber que poderá compensar esse “prejuízo” com os aditivos. “É claro descompromisso com o contrato original. Aditivo tem que ser a exceção, não a regra”, afirmou, dizendo ainda serem necessários mecanismos que valorizem a elaboração do projeto.

Um dos fomentadores às burlas é a “timidez da fiscalização”, segundo Adilson Dallari, ex-professor titular da PUC-SP, pois os tribunais de contas, por exemplo, não fiscalizam corretamente as concorrências públicas. Outro fator que contribui, explicou, foi a mudança, pela Emenda Constitucional 19/1998, no inciso XXVII do artigo 22 da Constituição Federal.

Estatais
A alteração retirou as licitações de empresas estatais da competência legislativa da União. “Elas passaram a ter regras próprias, que atendem às vontades de seus dirigentes”, afirmou Dallari, criticando ainda que o estatuto das estatais, na verdade, “são leis de licitações com estatuto anexo”.

Além dessa alteração, disse, as mudanças promovidas na Lei 8.666/1993 com o passar dos anos pioraram a situação. “A lei 8.666 tinha coerência, mas foi desfigurada”, criticou, especificando o artigo 24 da norma, que trata dos casos de dispensa de licitação, foi, para ele, expandido indevidamente. “Foi feito casuisticamente.”

Lei 12.462/2011 também não escapou das críticas do especialista, para quem a norma “foi feita para quebrar o galho” por conta dos grandes eventos sediados pelo Brasil nos últimos anos (Copa e Olimpíadas). “O Senado tem que ratificar compromissos internacionais assumidos, mas, no caso da Copa, o presidente assumiu o compromisso e o Senado teve que engolir”, criticou.

Para Dallari, o regime diferenciado de contratações “abriu caminho para acertos”, pois, por exemplo, o projeto básico, que sempre foi um ponto problemático nas licitações, foi suprimido pelo sistema integrado. “Em termos legislativos, regredimos bastante.”

Efeito cascata
Atuando em licitações há 50 anos, Dallari brincou que seus antigos grandes clientes estão na cadeia — por serem das empresas investigadas na “lava jato” — para afirmar que o problema não está na licitação, mas no surto de corrupção visto atualmente. “Durante muito tempo as licitações eram competitivas de verdade, sem ser mera atuação”, lembrou.

Mas, com o passar dos anos, continuou, a licitação se tornou o meio mais seguro de burla ao sistema de fiscalização. “Não é porque o rito da licitação foi seguido que tudo está em ordem”, afirmou, explicando que isso acontece porque, quando a autoridade dispensa a licitação, ela assume o risco, sendo que uma licitação de cartas marcadas dilui o risco.

Marçal Justen Filho, que foi professor titular da UFPR, afirmou não adianta fazer licitação ou mudar as regras se quem organiza a disputa for corrupto. Ele também considera o modelo licitatório contrário ao mercado capitalista. O ex-professor disse que essas contratações públicas causam um artificialismo que afeta o mercado.

“A licitação é a manifestação mais concreta do ideal de que o estado pode dominar o mercado”, opinou, afirmando ainda que o processo licitatório cria um mercado artificial sem qualquer dado que o embase, pois não existem dados sobre como funcionam as licitações.“Criam-se critérios sem saber se são realmente necessários para a licitação”, afirmou.

Justen Filho explicou ainda que há uma assimetria de informações entre as partes da licitação: a parte com menor conhecimento tende a fazer escolhas ruins, favorecendo, mesmo que indiretamente, o mau fornecedor a expulsar do mercado o bom empresário, “que não vai agir de maneira ilícita”.

“A supremacia do interesse público é a consagração do desequilíbrio de poderes”, disse Justen Filho, explicando que o Estado cria regras para compensar a falta de conhecimento sobre o tema a ser licitado para evitar ser lesado. “O pregão acaba sendo um dos incentivos a seleção adversa. O Poder Público não sabe o que está comprando e se baseia pelo menor preço.”

“É preciso amostra para saber o que se compra. Quem toma café em repartição pública sabe do que estou falando”, ironizou. “Como licitantes sérios e honestos não querem mais participar de licitação, apenas aqueles que topam as regras do jogo concorrem. Licitação não é um projeto de estado no Brasil, mas sim um meio de se validar”, complementou.

Pré-licitação
Adilson Dallari ressaltou que o processo licitatório está totalmente invertido na medida que a elaboração do projeto tem sido feita por empresas já pré-escolhidas pelos parlamentares que pedirão emendas ao orçamento para viabilizar a obra. “Obviamente que é um jogo de cartas marcas. Quem ganhou a licitação já trabalhou na aprovação da emenda.”

Uma das mudanças listadas pelo professor Floriano Marques Neto é a formalização do licenciamento ambiental da obra antes que a contratação seja finalizada, pois isso evita alterações no projeto a apresentado. Ele também sugeriu que sejam criados mecanismos que permitem um planejamento de longo prazo das obras, evitando assim as pressões políticas pela “paternidade” do projeto. “Essa história de cortar a fita tem que acabar”, disse.

O professor também afirmou ser necessário que a fiscalização sobre a regularidade nos pagamentos e na execução da obra seja externa. “Chega de fiscal pedir propina para emitir certificado”, criticou, listando ainda a necessidade de inserir uma cláusula nos contratos licitatórios que prevejam um momento para que todas as partes cumpram obrigações contratuais, por exemplo, desapropriações.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2017.